Uma noite com a morte
Juan Patricio Lombera
Um quarto de 2 por 2 metros situado no meio do
cenário. O quarto consta de uma parede ao fundo e de duas laterais (a da
direita tem uma porta e uma janela). O tecto tem um foco que fica aceso durante
toda a representação; fora do quarto não há luz até ao final. Encostada à
parede do fundo, à esquerda, há uma cama, ao lado há uma estante de livros com
livros de filosofia, ciências políticas, e literatura. A parte superior da
estante, que tem 1 metro de altura, serve de mesinha de cabeceira; sobre ela há
um candeeiro, uns copos e uma caneca de água. Entre a cama e a parede da
direita há umas caixas onde estão guardados pratos, cobertores e roupa. Na
parede do fundo vêem-se fotos de Frida Kahlo e cartazes de filmes mexicanos e
estrangeiros. No chão há um fogão eléctrico, algumas verduras metidas em sacos
plásticos e outras comidas. Aparece Jorge -, um jovem universitário
vestido com um casaco de couro, uma camisa preta, jeans e sapatilhas. Traz uma
mochila ao ombro que atira para o chão. Apanha uma laranja do chão e começa a
descascá-la, sentado na cama.
Jorge - (Enquanto come e para si mesmo) Que dia!
De manhã não tive tempo nem para respirar na oficina e na escola reprovei a
Lógica. Depois a Letícia deixou-me a secar na estação de Campanhã. O melhor é
ler um bocado e ir dormir. Amanhã é outro dia.
Jorge - deixa a laranja em cima da
estante, de onde tira «A microfísica do poder», de Foucault e deita-se na
cama. A cabeça está pousada na almofada, e os braços esticados para o tecto com
o livro nas mãos. Começa a ler e, quase ao mesmo tempo, a bocejar. Depois de
alguns minutos os braços baixam para o nível da cama e passado algum tempo
adormece com o livro sobre o peito.
Fora do quarto, vê-se a aproximar a sombra de um homem; aponta um revólver com
silenciador e dispara dois tiros através de um furo na janela. O corpo de Jorge
- ressalta duas vezes. O assassino foge.Jorge - levanta-se
na cama e tenta ligar o interruptor várias vezes. Por fim, consegue. Volta-se e
vê sobre a cama um manequim (que representa o seu corpo) ensanguentado.
Jorge - (Em tom tranquilo e sonolento) Mmmmh… Mais
um pesadelo.
Jorge - tenta adormecer novamente
sem êxito. Começa a preocupar-se quando aparece uma mulher formosa de tez
pálida, de vestido preto com um amplo decote, que entra no quarto.
Morte -Posso?
Jorge - Pelos vistos, este pesadelo está-se a tornar num
sonho dos anjos. Faça o favor, e diga lá que milagre do céu trouxe tão bela
dama a esta humilde morada.
Morte - Estás a ver, passava nas proximidades, ouvi dois
tiros e vim ver.
Jorge - (Preocupado, mas querendo parecer indiferente)
Tiros? Quais tiros? Ainda vais achar que sou um mal-educado. Senta-te, à
vontade. (Indicando a borda da cama com a palma da mão, mas ela fica de pé.)
Morte - Não, obrigada, não tenho muito tempo agora e…
Jorge - Como é que te chamas?
Morte - Digamos que tenho muitos nomes, segundo o país
em que estiver, mas não to vou dizer…
Jorge - Vá lá, ó internacional, trabalhas ou estudas?
Morte - (Irritada) De momento estou a tentar
trabalhar, mas tu não me deixas, com as tuas interrupções.
Jorge - Ui! Não fiques ofendida, também não é caso para
tanto. E trabalhas em quê?
Morte - Digamos que a transportar as pessoas
necessitadas para os lugares que desejam.
Jorge - (Irónico e aproximando-se dela, tentando
abraçá-la pela cintura) Então, se estou a precisar, mas não creio que
tenhamos que ir a algum lado para nos elevarmos… que é que achas?
Morte - (Libertando-se para se dirigir à porta)
Acho que não percebeste. Eu não me ocupo de criar fantasias eróticas, e tu não
estás a sonhar, o meu trabalho é como qualquer outro, talvez um bocado
especial, se quiseres, mas é um trabalho, ao fim e ao cabo. Portanto, vens ou
não vens?
Jorge - (preocupado, volta-se várias vezes para ver o
seu cadáver, apalpa-o, tenta integrar-se nele, puxa os próprios cabelos e fala
em tom alterado). Ou seja, eu… tu és…
Morte -Ahaaa.
Jorge - E, no entanto, enganas-te. Claro que, para ti, é
muito fácil escolher um nome ao acaso, do directório, e foder o contemplado, só
porque sim.
Morte - Pareces um miúdo pequeno, eu não tive nada a ver
com a tua morte. Além do mais, de que é que te queixas se nem sequer sofreste?
Havias de ir aos hospitais, onde quatro médicos conferenciam enquanto o doente
tenta gozar e perpetuar os últimos estertores da vida. Já nem falo dos
condenados à morte que tentam ficar acordados toda a noite anterior à execução,
para não serem surpreendidos na hora de comparecer perante mim… Também é
verdade que há pessoas que me desejam… (Jorge - olha-a de
modo lascivo de cima a baixo) Não dessa maneira. Refiro-me aos velhos que
vivem nos asilos, aos suicidas. Enfim, acho que já palrámos demais e são horas
de irmos. (Estende-lhe a mão e acena com a cabeça paraa porta) Vamos?
Jorge - E se eu não quiser?
Morte - A questão não é tu quereres ou não. Tens que
vir.
Jorge - Não percebo como é que, sendo tão bonita,
consegues ser tão cruel.
Morte - Obrigada.
Jorge - Um criado seu.
Morte - Não penses que, com piropos, escapas ao teu
destino. Bem, Jorge -, agora a sério, temos que ir.
Jorge - Não quero.
Morte - Já te disse que não me interessa o que pensas.
Não podes dizer-me que não e ficar na cama, todo contente. (Aproxima-se e
passa-lhe a mão pelo cabelo) Olha, eu sei que é difícil aceitar a morte,
mas há uma hora para todos e a tua chegou. Além do mais, com o tempo vais-te
dar conta do sortudo que és.
No diálogo seguinte a morte interrompe Jorge - sempre
que este queira manifestar as suas objecções e à medida que ela vai enumerando
os seus argumentos, ele vai ficando cada vez mais desesperado.
Jorge - Mas não é justo. Porquê eu? Quer dizer… só tenho
vinte e um anos e tenho muitas ambições e não me quero ir sem realizar algumas
delas. Ainda por cima, não vivi…
Morte - Muitos gostariam de ter chegado à tua idade ou
morrer como tu. Sabes quantas crianças morrem de fome ou de doenças
relacionadas com a pobreza todos os anos?
Jorge - Pois, mas…
Morte - Sabes quantos seres humanos agonizam
diariamente, a sofrer com dores durante dias ou anos de doença incurável ou por
causa de uma ferida de guerra?
Jorge - Sim, mas…
Morte - Sabes quantas pessoas morrem diariamente
amarguradas por não terem podido realizar os seus sonhos e tendo tido uma vida
medíocre?
Jorge - Pois, mas…
Morte - Pois, mas quê?
Jorge - (Pensativo) Quero lá saber dos outros, a
mim o que me importa neste momento é a minha pessoa e não estou disposto a que
me leves sem dar um bocado de luta primeiro.
Morte - O que tem de ser tem muita força. Não adianta
resistires.
Jorge - Quer dizer que não interessa o que diga ou faça,
porque não posso impedir que me leves contigo.
Morte - Com efeito.
Jorge - E isso parece-te justo?
Morte - Não me interessa a justiça. A única coisa que me
interessa é cumprir com o meu trabalho; transportar almas. Além do mais, ao fim
e ao cabo, o mundo é injusto, não é? Portanto, porque é que eu não haveria de
ser?
Jorge - Não me admira que te estejas nas tintas para as
consequências das tuas aparições. (Olhando-a nos olhos e procurando
ofendê-la) No fundo, és completamente ignorante sobre os problemas da vida.
Morte - Ui! Que mau…
Jorge - (Levanta-se e começa a andar às voltas ao
quarto) Dizes-me que há milhares de pessoas que te desejam, para acabar com
o seu sofrimento, mas também muitos que procuram gozar até ao último minuto as
suas agonias e que festejam por continuarem vivos, mesmo na dor; como essa
mulher (aponta para a foto de Frida Kahlo).
Morte - A excepção que confirma a regra, não te parece?
Jorge - Tu não sabes o que é a paixão; o sentir que não
vales nada se não tiveres a pessoa que amas a teu lado… e, claro, nunca te
sentiste tão extasiada, depois de fazer amor, ao ponto de pensares que a tua
vida poderia acabar ali e que tinha valido a pena vivê-la. Tu só sabes
destruir, acabar com os sonhos e criar miséria e dor à tua passagem.
Morte - Cala-te, impertinente! (Levanta-se,
aproxima-se dele e dá-lhe um bofetão que o faz cair)
Jorge - olha-a, impressionado, do
chão, ao lado da cama, enquanto ela respira profundamente para se acalmar.
Jorge - Não posso lutar contra ti; portanto, fá-lo
rápido e sem dor, mas, como viste, nem sempre tens razão e só tens a tua força
para me obrigares a obedecer-te.
Morte - Perdoa-me. Nunca tinha perdido as estribeiras
desta maneira. Magoei-te?
Jorge - Não é nada.
A morte senta-se na cama, ao lado de Jorge, e
agacha-se para lhe ver a maçã do rosto, enquanto ele lhe mira os seios,
deleitado. Quando ela leva a mão à cara de Jorge, este, mecanicamente, leva a
mão à cara para se proteger,
Morte - Anda lá, não sejas palerma… prometo que não te
vou magoar.
Por fim Jorge baixa o braço e ela inspecciona. Pouco a
pouco, Jorge inclina a cabeça para as pernas dela até pousá-la, enquanto a
morte lhe começa a afagar os cabelos e a baixar a mão até ao ventre, por baixo
da camisa. De supetão, ela abre as pernas e Jorge cai.
Morte - (Rindo-se e levantando-se ao mesmo tempo)
Vais aprender a nunca confiar em estranhos e muito menos em mim.
Jorge - És uma sacana, mas já te digo. ( Levanta-se
e corre atrás dela pelo quarto)
Morte - (Rindo-se) Não… socorro… ajudem…
Rapidamente Jorge agarra-lhe a mão e, ao puxá-la, ela
volteia e choca com ele, e os seus lábios unem-se, separando-se imediatamente,
ficando a olhar-se fixamente nos olhos.
Jorge - Desculpa, não era minha intenção…
Morte - (Nervosa) Não tem mal, não tem
importância.
As duas personagens sentem-se incómodas, caladas, sem
saber o que dizer, evitando o olhar do outro.
Jorge - e Morte - (ao mesmo tempo)
Bem…
Riem-se.
Jorge - Tu, primeiro.
Morte - Não, tu.
Jorge - Tu.
Morte - (Autoritária) Não. Diz tu.
Jorge - (Cabisbaixo) Bem… portanto, como te
estava a dizer, podes-me levar, mas, como te disse, não estou de acordo, e não
tens nenhum argumento, excepto a força, para me convenceres.
Morte - Ouve, esta noite tem sido bastante estranha para
mim. Calculo que para ti também. Perdi as estribeiras, a seguir preocupei-me
contigo, também me comportei de maneira – como é que vocês dizem? – infantil,
ri-me e até senti um certo prazer inexplicável quando os nossos corpos se
tocaram. Estou certa de que te vou convencer, através dos meus argumentos, se o
quiser. Por isso, e porque me proporcionaste uma série de emoções para mim
desconhecidas, estou disposta a dar-te uma oportunidade para salvares a vida.
Proponho-te que discutamos toda a noite e se, ao amanhecer, não te tiver
convencido, deixo-te viver. Isto, é claro, se te atreveres.
Jorge - Claro que atrevo. Não tenho nada a perder e
muito a ganhar.
Morte - Mas antes quero que me expliques um pouco isso
que tu disseste sobre arder antes de morrer.
Jorge - Ora bem, considero que há duas formas de viver
esta vida. Podem-se seguir as normas impostas pela sociedade e arranjar um
trabalho estável o mais bem remunerado possível, dependendo das tuas
influências e do meio donde vens, casar, constituir família, pagar os impostos
e, resumindo, conseguir a maior tranquilidade, comodidade e bens materiais,
para ti e para os teus. Mas também podes mandar tudo às urtigas, decidires, tu
mesmo, cada dia, o que vais fazer, andar por aí e por ali, a conhecer lugares,
mesmo sem um tostão no bolso, consumir e fazer tudo o que a sociedade considera
mau e procurar sempre experiências e apostar tudo em cada golpe da sorte que a
vida nos traz. Desta forma consegue-se viver com mais paixão.
Morte - E no teu caso?
Jorge - Estou dividido entre os dois tipos de vida. Na
realidade, não me importa morrer aos 27 anos, como o Jim Morrison, depois de
consumir todas as drogas do mundo, dormir com todas as mulheres que me
apetecer, escrever poemas e canções, e no fim converter-me num deus do rock
androll.
Morte - Ou seja, por ti, só se pode obedecer à lei ou
rebelar-se individualmente contra a sociedade. E onde é que cabem todos aqueles
que procuram um tipo de vida melhor, desde uma guerrilha a uma ONG?
Jorge - (Emocionado) Se te tivesse conhecido há
três anos, tinha-te dito que a vida valia a pena ser vivida pelo simples facto
de o mundo, mais tarde ou mais cedo, ir converter-se num só bloco comunista,
onde reinaria a igualdade, a justiça e a dignidade para todos, e basearia os meus
argumentos na concepção materialista de Marx. Nesse propósito, a minha função
seria contribuir, na medida das minhas possibilidades, para a chegada desse
momento. Mas a queda do muro de Berlim e a divulgação de todos os abusos
cometidos no Bloco de Leste demonstraram-nos que qualquer revolução,
independentemente dos benefícios que traga, acaba por converter-se em
burocracia e contrair novos males, quiçá inexistentes antes. Creio que os
guerrilheiros e as pessoas que trabalham para uma ONG também são rebeldes. Mas
tenho a certeza de que no final vão acabar por se acomodar e perder o alento
revolucionário.
Morte - Parece-me que mudas de opinião com muita
facilidade e que também tu te adaptas sem qualquer problema aos novos tempos,
sem persistir nas tuas ideias.
Jorge - Não é isso. O que acontece é queee…
Morte - Não foi esse mesmo Marx que disse que a História
se repetia e da primeira vez era uma tragédia e da segunda uma comédia?
Jorge - Sim, mas não contou com o facto de que o ser
humano é egoísta por natureza. E, além do mais, o que ficou claro é que o
comunismo dele não é nenhuma ciência exacta e que a instauração mundial da
ditadura do proletariado não acontecerá por desígnio de alguma força superior.
Morte - Isso é verdade, mas também não podes descartar a
ideia de que qualquer dia ressurja esse sistema como aconteceu com a República,
que parecia morta em 1815 e que é o sistema de governo mais difundido
actualmente. O que acontece é que de certeza que tiveste vergonha de manter as
tuas crenças e te juntaste aos slogans da sociedade para evitares a
marginalização. Então, onde é que está a rebeldia?
Jorge - (Sem convicção) Em agir de acordo com a
minha consciência, sem fazer caso do que digam os outros já que, ao fim e ao
cabo, o que importa é estarmos satisfeitos connosco mesmos.
Morte - Quer dizer, procurar a auto-perfeição já que não
podemos confiar nos outros. Um bocado post-modernista, não te parece?
Jorge - Sim, e então?
Morte - (Sorrindo) Não, nada.
Jorge - Bom, talvez não seja tão rebelde como digo, mas
essa não é a única razão pela qual quero viver. Também há o amor.
Morte - O amor?! Ui, que piroso!
Jorge - (Rindo) Não, a sério. Tu não sabes como é
fantástico gostar tanto de uma pessoa que não te importavas de perder a vida
para salvá-la, e, o melhor de tudo, é saber que ela também gosta de ti.
Morte - E tu, tens namorada?
Jorge - Não exactamente; uma amiga colorida.
Morte - Uma quê?!!
Jorge - Trata-se de uma relação em que fazes tudo e não
há nenhum compromisso de nenhuma das partes.
Morte - Então isso não é amor; é luxúria.
Jorge - Neste caso é. Mas mesmo assim, o simples facto
de poder dormir com alguém frequentemente faz com que a vida valha a pena, não
achas?
Morte - Se tu o dizes…
Jorge - Não, a sério, atingir o que os franceses chamam
«pequena morte» com a tua parceira é uma experiência única… como é que hei-de
dizer? Ah, faltam-me as palavras.
Morte - Parece interessante. Tenho que experimentar.
Jorge -Pois não é tarde nem cedo. (Aproxima-se dela e
dá-lhe um beijo na boca, mas ao tentar abraçá-la, ela afasta-se)
Morte - Calma, bicho. Além do mais, não penses que me
seduzes com um pirolito, para evitares que eu cumpra a minha missão.
Jorge - OK, pelo menos tentei, e que conste que eu só
queria dar-te esse gosto, mas se não queres, é quanto perdes.
Morte - Não me digas! Não te sabia tão bom.
Jorge - (Levantando-se) Pois, este corpinho
caribenho, que tantas paixões provoca, não fica nada a dever ao do Richard Gere
ou a qualquer um de que te lembres.
Morte - (Rindo-se) Não… está bem… falemos
seriamente.
Jorge - (Volta a sentar-se, mas mais perto dela)
Pois, como te ia dizendo, o amor ou, se preferires, a luxúria, são, por si
mesmos, razões pelas quais não quero deixar este estado corpóreo.
Morte - E porque é que não andas com ninguém?
Jorge - Há três anos saía com uma rapariga alemã. Ela
chegou à pensão do meu pai, a «S. Rafael», e instalou-se por um mês. Gostei
dela desde o princípio, porque era muito bonita e simpática. O que aconteceu é
que a via todos os dias, à hora do pequeno-almoço, no mercado, e pouco a pouco
fomo-nos tornando amigos. Um dia ofereci-lhe os meus préstimos para levá-la a
passear ao Gerês e a Trás-os-Montes. Quando regressávamos de carro, depois de
ter bebido uns copos de tinto, parei a meio do caminho e olhei-a nos olhos
fixamente, aproximei-me e dei-lhe um beijo sonoro que durou uma hora. Começámos
a andar até que…
Morte - Até que…?
Jorge - Até que um dia, há cerca de um ano, chegou um
amigo meu, conheceu-a e acabou por ma sacar, o grande cabrão.
Morte - Ou seja, o amor também é doloroso.
Jorge - É verdade. Por isso, agora prefiro ter uma
amizade colorida. É menos prazeroso, mas mais seguro.
Morte - Pões de lado a paixão para evitar a dor, não é
assim?
Jorge - É.
Morte - E é esse tipo de vida que pretendes viver? Sem
sobressaltos e na mediocridade. Parece-me um pouco aborrecido.
Jorge - Ouve lá, também não penses que quero viver assim
para todo o sempre. O que acontece é que depois do primeiro desengano fica-se
mais conservador. Instintivamente, pões-te à defesa. Ainda por cima, nunca se
sabe de onde vão surgir os tiros. Por exemplo, a Paulina, conheci-a numa festa
de um amigo meu, que trabalha para o governo. Conhecemo-nos a dançar e acabámos
na cama. No dia seguinte ela disse-me que o trabalho dela consistia em
acompanhar altos funcionários a festas e dormir com eles quando surgia a
ocasião, por isso não queria começar relação nenhuma. Pela minha parte, ainda
estava bastante fodido por causa da Ana. Portanto, não pus nenhuma objecção.
Assim, continuámos a divertir-nos e tornámo-nos amigos coloridos e da última
vez que nos vimos decidimos viver juntos e que ela abandonava o trabalho. E não
penses que isso se deva a estarmos apaixonados; ela é que está cansada do
trabalho que tem e, por outro lado, damo-nos tão bem que porque não tentar?
Quem sabe, se calhar acabamos por nos casar.
Morte - E sabias, quando tomaste essa decisão, que a tua
vida corria perigo?
Jorge - Bom, para falar verdade, pensei que os velhotes
da Paulina podiam ficar lixados, e até pensar que ela deixava o trabalho por
minha causa, mas tinha a certeza de que a coisa não ia passar de uma tempestade
num copo de água.
Morte - E, mesmo assim, decidiste seguir por diante?
Jorge - Sim, o prémio valia a pena. Uns tantos golpes
esquecem-se depressa.
Morte - Ai, Jorge! És tão ingénuo.
Jorge - Porque é que o dizes?
Morte - A Paulina era a favorita de um governante, que,
ao saber das intenções dela, a sequestrou e torturou até ela confessar que
queria deixar tudo por ti. A Paulina está apaixonada por ti, e, por causa dela,
mataram-te.
Jorge - (Nervoso e irritado levanta-se) Merda…
Puta que pariu! (Aproxima-se daestante e atira ao chão todos os
livros de uma das prateleiras e depois dá socos na parede)
Morte - Isso não te serve de nada.
Jorge - E depois? Estou morto, não estou? Ninguém se vai
importar com o ruído do além (Torna a dar outro soco na parede). E ela?
Também a vais visitar? (Respira fundo e mantém os punhos cerrados).
Morte - Não, ela viverá, ainda que vá demorar algum
tempo a curar os ferimentos.
Jorge - (Vira-se e reclina-se contra a parede da
estante, continuando a respirar fundo, mas mais tranquilo) Merda… como é
possível que, por causa de uma porra destas, se tenha acabado tudo? Bom, pelo
menos ela está viva. (Começa a chorar silenciosamente)
Morte - (Levanta-se, aproxima-se dele e abraça-o
pelas costas) Olha, Jorge, sei que o que te fizerem é uma filha da putice,
mas tens que te resignar. Além do mais, o lugar para onde te vou levar não pode
ser assim tão mau (Começa a afagar-lhe o cabelo) para um rapaz tão
simpático e inteligente como tu.
Jorge - (Voltando-se enquanto ela continua a afagá-lo)
Tu achas?
Morte - Tenho a certeza (Olha-a com firmeza e
beija-o. Os beijos prolongam-se e pouco a pouco ele encaminha-a para a cama,
onde fazem amor, ela por baixo e ele por cima, entre gritos de êxtase de ambos).
Jorge - (Arquejante) Queres experimentar outra
vez?
Morte - (Respirando fundo) Não… obrigada… se bem
que tenha que reconhecer que isto é bom, de facto, como dizias. Não, não
devemos fazê-lo.
Jorge - Porquê? Se estamos a gostar…
Morte - (Triste) Porque complica o meu trabalho.
Agora vou ter pena de te levar comigo. Ainda que, por outro lado, pensando bem,
(piscando-lhe o olho) se vieres comigo podíamo-nos ver mais amiúde e
repetir a «experiência».
Jorge - (Rindo) Malandra (Chega-se a ela e
beija-a na bochecha, enquanto que, com a mão, lhe começa a fazer cócegas no
braço).
Morte - (Rindo e, ao mesmo tempo, tentando parecer
séria) Pára… anda… não brinques.
Jorge - (Separa-se) OK, de acordo. Que é que
queres fazer agora?
Morte - O mesmo que estávamos a fazer quando te lançaste
para cima de mim como um animal com cio.
Jorge - Se bem me lembro, foste tu que deste o primeiro
passo; portanto, se alguém foi atacado, fui eu.
Morte - Está bem, como queiras, mas continuemos a nossa
conversa.
Jorge - (Olhando-a fixamente) Olha, não é que não
goste de ti. Devo dizer que te acho muito agradável, mas sinto que o meu tempo
ainda não chegou. Como te disse antes, ainda não ardi.
Morte - Não ardeste, como? Não decidiste vir estudar
para a aqui e passar misérias, quando podias ter ficado na tua terra e
arranjado um trabalho bem remunerado, com as influências do teu pai, a quem
recusaste a ajuda material?
Jorge - Sim, e depois?
Morte - Não decidiste ir viver com a Paulina, sabendo
que a tua vida podia correr perigo?
Jorge - Sim, mas…
Morte - Não estás a perceber? Cada vez que tomavas uma
decisão sem te importares com as consequências, porque achavas que era o
correcto, estavas a arder de vida no teu interior.
Jorge - Talvez, mas ainda não gozei os frutos dessas
decisões.
Morte - Isso não interessa, o essencial é ter tido o
valor de ter seguido em diante apear de tudo. Além do mais, para que é queres
continuar a viver? Para acabar os estudos, conseguir um trabalho bem remunerado
aqui ou lá na terra, casar-te, ter filhos e acomodar-te definitivamente a um
sistema burguês de vida e ser um conformista medíocre?
Jorge - Não. Quero terminar a minha carreira de direito
para, com base na lei, defender os trabalhadores dos capitalistas, apoiar os
desfavorecidos contra os banqueiros usurários e, em poucas palavras, ajudar,
através do meu modo de vida, os necessitados frente aos poderosos. No final de
contas, não é preciso ser um guerrilheiro ou um depravado para se ser rebelde.
Morte - Nisso tens razão, mas temo que a profissão que
escolheste seja das que mais corrompe os homens. Sabes o que se diz? “Diz
sempre a verdade ao teu advogado, que ele encarrega-se de mudá-la.”
Jorge - (Rindo com vontade) É uma boa graça, não
conhecia.
Morte - E que mais é que queres fazer?
Jorge - Não sei, ter uma relação estável… viajar… ler e
escrever nos tempos livres, viver tranquilamente.
Morte - Olha que, com o teu trabalho e os clientes que
tencionas ajudar, estou a ver difícil que consigas realizar alguns desses
desejos. Em compensação, do outro lado, comigo podias ter tudo. E grátis.
Jorge - Pois, claro, mas não seria a mesma coisa.
Morte - Quem disse?
Jorge - Não era a mesma coisa porque, por exemplo, estar
na praia mais linda do mundo não é tão excitante se não houver miúdas giras
para engatar ou, pelo menos, para ver. De que é serve ler milhões de livros se
não tiveres ninguém com quem comentá-los.
Morte - E porque é que pensas que é só solidão? (Piscando
o olho) Eu podia-te fazer companhia.
Jorge - Diz-me uma coisa. Como é que é o outro lado para
um ex-vivente?
Morte - Olha, não sei de ciência exacta como aquilo é
por lá, mas sei que não existe, como tu acreditas, céu, inferno e purgatório.
Jorge - (Surpreso) Ah, carago! Explica-me isso
com mais calma!
Morte - Pois é, tanto quanto sei, cada um vai parar ao
lugar que lhe corresponde, segundo os seus gostos pessoais. Por exemplo, um
banqueiro acostumado a trabalhar e a viver em constante competição com os
outros e até, nalguns casos, a esquecer toda a ética nos momentos de tomar
decisões importantes respeitantes ao seu banco, como despedir um trabalhador
cheio de experiência, sem ter em conta os seus méritos, porque fica mais barato
contratar um jovem ambicioso e inexperiente, encontrará um mundo à sua medida.
Um mundo de luta, sem lei, em que poderá mandar nos outros, mas poderá também
ser vítima de injustiças. Em compensação, tu, se de facto tentas viver uma vida
tranquila, de prazer e reflexão, também poderás fazê-lo.
Jorge -Ou seja, depois da vida existem outros mundos e cada
um escolhe a sua nova morada.
Morte - Pelo menos, foi isso que me disseram algumas das
almas que transportei para lá, depois de algum tempo de «já não viver».
Jorge - E como é que é possível que, uma vez que és tu
que escolhes o teu próprio mundo, te possas acotovelar com outras pessoas?
Responde-me lá a isto!
Morte - Não sei, mas suponho que algo tem a ver com a
similitude de gostos das almas.
Jorge - Olha que interessante. Está-se sempre a
aprender. Ainda que seja a última coisa que aprendas.
Morte - (Dá-lhe um ligeiro cachaço) Não sejas
palhaço. Além do mais, tu tens uma vantagem sobre os outros.
Jorge - Qual?
Morte - A de, em função do tempo que te ofereci, poderes
chegar a vislumbrar que tipo de mundo é que te tocaria. Isso, claro está, na
condição de seres sincero contigo mesmo e aceitares os teus desejos, tanto os
positivos como os negativos.
Jorge - Ou seja que, se for sincero, poderei saber o que
me espera.
Morte - Se quiseres pôr a coisa nesses termos, se bem
que duvide que se possa ser totalmente sincero, sobretudo porque uma grande
parte da tua vida depende dos outros e a tua formação está marcada pela
educação, pelo meio e pelos pais.
Jorge - Está certo, mas há um momento em que cada um,
independentemente da formação que tenha recebido, escolhe o que quer ser. Além
do mais, se levarmos à letra a tua ideia, isso significaria que existe um
determinismo na conduta das pessoas e que ninguém poderia mudar.
Morte - Tu acreditas que as pessoas podem mudar?
Jorge - Se tiveres uma revelação ou sofreres uma experiência
inusitada ou inclusive, porque não, através de uma relação.
Morte - Pode ser, mas penso que, na maioria dos casos,
os seres humanos não mudam, apenas se tornam mais manhosos.
Jorge - Quem sabe, mas, é curioso, estava a pensar no
que me disseste sobre os mundos alternativos e acho que, de certa maneira, se
nós quiséssemos, poderíamos viver num paraíso, mas, por uma estranha razão,
agarramo-nos ao inferno.
Morte - Também não é preciso seres trágico. Não te
flageles! O mundo também tem aspectos agradáveis e também se pode alcançar a
felicidade nele.
Jorge - É verdade… Sabes, tem graça, agora sou eu que
pareço a morte e tueu; digo-o porque, pela maneira como nos expressamos, até
parece que sou eu que te quero levar.
Morte - (Sorrindo) Tens razão.
Jorge - Sabes uma coisa que me fode verdadeiramente
neste mundo? É a felicidade com que aceitamos que nos imponham ideias estúpidas
sem sequer as rebatermos.
Morte -Referes-te a quê?
Jorge - À maneira como, por exemplo aceitámos um sistema
que apenas favorece o capital financeiro e que aumenta a distância entre ricos
e pobres; à facilidade com que nos vendem a ideia de que necessitamos, em todos
os países, de um líder tipo Moisés para conduzir o seu povo. Hoje em dia
chegou-se à conclusão de que a melhor maneira de escolher esse líder é através
das urnas, o que não está errado, mas não seria melhor se todos participássemos
das decisões que afectam as nossas vidas em vez de nos deixarmos levar como
carneiros? Não seria melhor tentar criar um mundo mais justo em oportunidades
em vez de aumentar as diferenças?
Morte - (Simulando estar cansada) Valha-me Deus!
Tinha logo que me sair um sonhador. Olha, talvez um dia o homem evolua o
suficiente para respeitar cada individuo, cada nação e, acredita, tal como
dizes, um mundo melhor, mas vocês por enquanto ainda são demasiado primitivos e
apenas começam a dar-se conta de que o que afecta uma grande quantidade de
seres humanos acaba por se repercutir nos países mais ricos, de uma ou de outra
maneira. O que mais me admira é o teu apego a este mundo, a pensares dessa
maneira.
Jorge - Tens razão, se calhar não quero morrer porque
estar influenciado pela minha educação religiosa, que proíbe o suicídio, e aceitar
ir contigo, nestas circunstâncias, equivaleria a isso. Talvez seja demasiado
humano para querer abandonar este sítio, com todos os seus defeitos, ou pode
ser que tenha medo do desconhecido.
Morte - (Abraçando-o) Não tens nada a temer; eu
vou estar a teu lado, a ajudar-te no que for preciso.
Uma luz entra pela janela, e a parte exterior do
quarto ilumina-se progressivamente até haver uma claridade total no final.
Começa a ouvir-se o ruído dos autocarros e da rua, retomando a vida. Ouvem-se
os gritos dos vendedores ambulantes e de um galo a cantar. O ruído vai
aumentando até chegar Paulina, com um vestido provocante e com uma pisadura num
olho, entrando pela direita, e começando a bater à porta, primeiro pausadamente
e esperando uma resposta, depois cada vez mais forte. No final, a morte precisa
de gritar para poder ser ouvida.
Morte - (Levanta-se e põe-se de costas para a
estante, olhando Jorge) Acabou o tempo. O que é que decides?
Jorge - Não sei… gostava de ficar contigo, mas… (Aproxima-se
dela até que ouve as pancadas na porta e vai abri-la, mas hesita e não o faz.
Até um pouco antes do final, Jorge anda entre a porta e a morte sem saber o que
fazer).
Paulina - (Batendo à porta) Jorge, sou eu, a
Paulina. Acorda e abre.
Morte - (Levantando um pouco a voz) Vem comigo,
não lhe… (Ruídos de claxons e de vendedores) ligues. Se não a amas,
só lhe podes fazer mal.
Paulina - (Batendo cada vez com mais força) Jorge,
abre. Temos que falar.
Jorge - Já (Ruído de claxons, vendedores, pancadas na
porta, que tornam a resposta inaudível) vou. (Aproxima-se,
mas não abre)
Morte - (Aumentando a voz, nervosa, sobre os mesmos
ruídos e falando ao mesmo tempo que Paulina, que começa a gritar. Jorge está no
centro do quarto, onde ficará até ao final.) Decide-te, ela ou eu?
Paulina - (Ao mesmo tempo que a morte) Jorge, não
te escondas. Temos que falar.
Jorge - (Gritando e virando a cabeça para ambos os
lados) O quê? O quê?
(Aos
ruídos anteriores junta-se o de música, a todo o volume, de algum vizinho)
Morte - (Dirige-se ao público. Param os ruídos. Agita
os braços e grita a plenos pulmões) Que é que decides, porra?
As luzes apagam e cai o pano
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