Monday, March 23, 2020

O fim do capitalismo



Ao princípio, toda a gente pensou que se tratava de uma doença surgida na China, por causa da higiene escassa, nos espaços públicos, dos seus habitantes e do seu gosto pela ingestão de toda a espécie de bichos. Mais uma dessas pragas como a gripe das aves ou a peste suína… a coisa resolve-se. Pouco a pouco, esta enfermidade foi invadindo outras nações. Os chineses quiseram ocultar o facto, mas como já não foi possível, começaram a aplicar medidas draconianas encarcerando os cidadãos nas suas cidades e casas para, pouco a pouco, reduzir o número de doentes e vencer a enfermidade.
Mas nessa altura o vírus já tinha começado a invasão do planeta. Algumas nações reagiram com celeridade, fechando fronteiras, como a Rússia, ou procurando o inimigo na rua por entre quem parecia saudável. Os mais espertos foram os coreanos, que fizeram milhares de testes, conseguindo, com a ajuda da população, que levou a sério as recomendações de não sair de casa, reduzir os contágios no espaço de um mês. Enquanto o problema esteve confinado à Ásia, os europeus pensaram que não era caso para tanto. Vinha aí o bom tempo que acabaria com o bicho, diziam, por mais que na Austrália, na altura em pleno verão, a doença crescesse paulatinamente.
Quando o evento mais importante do mundo das redes móveis foi cancelado, por os trabalhadores das multinacionais do setor se negarem a acudir, muito gente acusou os executivos das ditas empresas de cobardia, lamentando o cancelamento do dito evento. Os alarmes soaram finalmente quando o contágio chegou a Itália. Só quando começaram a morrer cidadãos do primeiro mundo se começou a levar as coisas a sério. Cada dia, o número de infetados crescia de forma exponencial e, com ele, o de mortos. Mas, mesmo assim, os governantes negaram-se a encarar o inimigo à maneira dos chineses. Enclausurar cidadãos nas suas casas ia contra os valores democráticos que diziam defender. Não obstante, acabaram por tomar as ditas medidas, quando o mal já estava feito.
O problema foi encarado de modos distintos. Imitar o modelo chinês e recluir a população, para não saturar os hospitais, ou não fazer nada e esperar que, após um contágio maciço inicial, a população desenvolvesse os seus próprios anticorpos. Nos países pobres, exceto no Irão, não havia assim tantos infetados ou mortos. Pensou-se uma vez mais que as altas temperaturas e uma alimentação mais condimentada retinham o contágio, já para não falar das bebidas espirituosas, mas a realidade era muito mais simples. Por não haver praticamente testes, especialmente em África, não havia tantos infetados oficialmente falando, e como as populações desses países eram jovens, apenas 10 a 15% da população tinha muitas probabilidades de morrer. De facto, eram tantos os infetados e tão grande o perigo que aconteceu uma coisa que nem o melhor escritor de ficção científica teria previsto: o mundo praticamente parou. As fábricas fecharam, pondo temporariamente os trabalhadores na rua, os empregados de escritório tentaram continuar a trabalhar a partir de casa, cuidando ao mesmo tempo dos filhos e da família. A China era a fábrica do mundo. Quando esta parou, acabou-se o fornecimento de peças de automóvel, medicamentos, eletrodomésticos e todos os produtos imagináveis.
Outra frente desta guerra era o médico, mas nem perante a gravidade desta situação as empresas farmacêuticas foram capazes de aplacar as diferenças e unir esforços, competindo entre si para ver quem conseguia produzir uma vacina e ficar com o dinheiro dos infetados. Uma das primeiras vitórias consistiu no descobrimento de um medicamento antigripal que reduzia o tempo de cura dos infetados leves. Quando este medicamento foi posto à venda em todo o mundo, as pessoas respiraram de alívio. Já havia um tratamento que curava os pacientes em tempo record, impedindo que ficassem muito tempo afastados dos seus postos de trabalho. E como quem morria eram os velhos, outrora seres respeitados pela sociedade e agora vistos como um estorvo no mundo neoliberal, ninguém, tirando os familiares, se preocupou. De facto, apesar de nenhum líder o ter confessado (nem sequer Trump), os governantes viram com satisfação a morte dos mais velhos, até porque nas suas mentes estes só representavam gastos para o estado e nada produziam. Uma funcionária de uma instituição de crédito internacional – Karine La Merde – já tinha avisado do perigo que os anciãos representavam para o sistema vigente: “Esses malditos velhos vivem demasiado tempo e vão acabar por dar cabo da economia mundial. Quando se efetuaram os cálculos, não se pensou que poderiam viver para além dos 80 anos em média. Mas não, aí estão os japoneses e os espanhóis com 90 e 100 anos. Que falta de consideração para com as próximas gerações.”
Se os humanos se tivessem capacitado, talvez se tivessem salvado. Não foram capazes de ver as virtudes de um mundo menos interligado, sem tantos voos. Em todos os lugares em que as fábricas se encerraram temporariamente e as pessoas deixaram de se deslocar de carro para o trabalho, a qualidade do ar melhorou e, apesar de ao princípio ter havido muitas tensões pela partilha de 24 horas com uns familiares semidesconhecidos, rapidamente se recuperaram os hábitos de conversação às refeições e ressurgiram as leituras e os jogos de mesa com dados e fichas. Era a altura de planear um salário básico universal. Toda a gente sabia que dentro de algumas décadas, os robots tratariam do trabalho, e só uma elite de técnicos informáticos e robóticos teria emprego. Talvez dez por cento da população. Um mundo menos interligado poderia impedir o surgimento destes vírus universais. Não obstante, o ser humano não soube estar quieto. Sentia-se culpado por não fazer nada. E assim que o perigo passou, os chineses abriram, com grande alarido, as suas fábricas. O surgimento da vacina que viria trucidar o temível vírus era já só uma questão de semanas.
Ninguém contou, porém, com a minha capacidade de mutação. O meu segundo surto, tão infecioso como o primeiro, não respeitou, em questões de mortandade, nem os jovens nem os mais pequenos. Qualquer um sucumbia às minhas garras. Mas o mais genial da minha versão 2.0 foi tornar infértil toda a população da Terra. Levou mais de um século, mas finalmente hoje os animais e as bactérias podem conviver sem serem incomodados pelos humanos. Aquilo que os comunistas, os fascistas e os fundamentalistas não conseguiram, consegui EU; o coronavírus. Não havendo humanos, já não há oferta nem procura, nem produtos, nem bolsa de valores. Em poucas palavras, acabei com o capitalismo. Só exterminando os humanos é que foi possível.

                                                                                              Juan Patricio Lombera – trad. José Topa

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